Jorge Cruz em entrevista no JPN
https://jpn.up.pt/2018/10/12/diabo-na-cruz-vivemos-num-pais-em-que-o-folclore-esta-nas-banquinhas-de-souvenirs/
Há quanto tempo estão a trabalhar no “Lebre”?
Eu diria, mal acabámos a tour em 2016. Começou a ser trabalhado nessa altura em termos de composição, mas passou por uma fase de amadurecimento, mais de marinada.
A fase final, de finalizar arranjos e de escrever, no fundo, aquela que é a história do disco, arrancou em novembro do ano passado. Fizemos essa parte durante o Inverno de 2017/2018, entrámos em ensaios em março e começámos a gravar em abril.
Alguns dos títulos dos temas, como “Portugal”, “Terra Ardida” ou “Procissão” são sugestivos. Este é um disco de crítica social?
Não, acho que não. É um disco com uma dimensão mais conceptual, desta vez. É um disco muito pessoal, sobre a vida das pessoas. Apesar do ponto de partida ser sempre de quem está a escrever, acaba por ser um tema universal.
A temática do disco é um pouco a temática da pertença, da perplexidade perante o sentimento de não pertencermos a lado nenhum hoje em dia. No mundo moderno temos acesso a tudo, aparentemente, mas depois o ficar, o permanecer, o pertencer são valores um bocado difíceis de agarrar.
Nós, como banda que trabalha com a matéria-prima cultural do nosso país, quer a nível melódico, lírico ou paisagístico, estamos neste disco a tentar questionar o que é o sentimento de casa – se isso é a nossa família, o nosso sangue, se isso é a terra que nós pisamos… O que é isso? Este é um disco mais de perguntas do que de respostas. O disco gira à volta deste conceito de identidade e de pertença e é uma busca. O disco é uma viagem, é mais conceptual nesse sentido do que os outros.
Acham que o “Lebre” tem ingredientes para ser um sucesso de vendas ou é algo que não vos preocupa?
Não é, de maneira nenhuma, algo que nos tenha preocupado na preparação do disco. Não o fizemos a pensar em singles, mas é evidente que há duas ou três músicas que remetem para um Diabo na Cruz que as pessoas já estão habituadas a ouvir, porque também faz parte da nossa linguagem. Nós também temos a consciência daquilo que é a nossa linguagem, do que já fizemos e tentamos que um quarto disco seja um acrescento, mas também que faça parte de uma obra coerente.
De resto, fomos por caminhos que ainda não tínhamos ido nos outros discos e tentámos ser livres para encontrar espaços novos e coisas novas para dizer. Tentámos ser mais artísticos do que pensar em questões comerciais.
Como foi a evolução dos Diabo na Cruz desde o “Virou” até ao “Lebre” e sentem-se, hoje, mais livres para fazer algo mais “conceptual”?
Sim… São quatro discos de originais, mais uma série de concertos, um álbum ao vivo, mais uns EP, um dos quais eu também considero um disco que é o “Combate EP”.
De certo modo, uma das coisas que aconteceram antes de fazer este disco foi fazer um balanço do que estava para trás e, se queres que te diga, senti um certo conforto. Se tivesse ficado por ali, para mim estava bem. Tentámos fazer uma banda que misturasse rock e modernidade com a tradição portuguesa e conseguimos, está aqui: temos uma série de músicas que representam isso.
A verdade é que a sociedade e a cultura portuguesas mudaram bastante desde que nós começámos em 2008/2009 até agora 2018/2019, quando vamos estar a tocar e a viver este disco junto das pessoas. Aquilo que mudou tem, precisamente, muito a ver com o ponto de partida da banda: um ponto de partida que procurasse trazer certos condimentos da portugalidade, até um certo folclorismo, para a vida das pessoas de uma forma meio provocadora e de rutura com a cultura vigente naquele momento.
Hoje em dia, vivemos num país que está “folclorizado” para o turismo, onde o folclore faz parte das banquinhas de souvenirs e de tudo e mais alguma coisa. Ou seja, a banda Diabo na Cruz não faz sentido enquanto esse tipo de banda. Por isso, este quarto disco, para nós, tinha de ser diferente e acho que o caminho que encontrámos é um caminho mais profundo, um caminho que aprofundasse as nossas perguntas e as nossas ideias acerca do que é a nossa razão de ser enquanto banda e enquanto pessoas que estão a tentar intervir na cultura de um país.
Depois de quatro álbuns em oito anos, esperam nos próximos oito editar mais quatro ou este vai ser o vosso reportório por algum tempo?
[Risos] É difícil responder a isso, o disco ainda nem saiu. Não estamos preocupados com isso. A principal preocupação era saber se conseguíamos contribuir com algo que estivesse ao nível dos três discos que tínhamos para trás, que temos em muito boa conta, nos quais temos muito orgulho e que são os três diferentes entre si. Acho que fizemos um disco diferente deles e que está ao nível, ou até acima em vários aspetos.
Sobre os concertos nos coliseus, que espetáculo está a ser montado? Vai ter convidados?
Não é concentrados nesse tipo de truques debaixo da manga que Diabo na Cruz trabalha normalmente. Nós não tocamos há dois anos, o último concerto foi em 29 de setembro de 2016, precisamente no Coliseu do Porto. Não vamos regressar diretamente ao mesmo palco, porque vamos primeiro ao Coliseu de Lisboa.
Não conseguimos marcar no Porto antes, senão teríamos regressado diretamente ao mesmo palco, mas vamos regressar a esses palcos que são palcos que honram qualquer músico em Portugal. São objetivos, também, para qualquer pessoa que toque música vir a ter, em nome próprio, um evento nesses sítios.
Vão ser, essencialmente, concentrados na energia de matar saudades, de rever o nosso público, de esperar que toda a gente venha fazer a festa outra vez e de ver como nos sentimos. Acho que vai ser muito emocionante e emocional e estamos muito ansiosos que aconteçam.
Como é que uma banda sobrevive na era do download gratuito?
Nós, enquanto banda, sobrevivemos sempre à base de concertos, concertos fortes e de um reportório forte. Tivemos a sorte de ser muito bem recebidos desde o início. A partir daí, tivemos a oportunidade de ter um público especial que nos segue e que, quando estamos em tour, que nos persegue muitas vezes [Risos]. Há pessoas a fazer dezenas de concertos de Diabo na Cruz no mesmo ano, rostos que nós vamos conhecendo, algo que não acontece a qualquer banda até porque eu já tive outras bandas a quem isso não aconteceu.
Sobreviver artisticamente, passa por estares sempre a questionar-te, a procurar ser melhor e a fazer algo diferente do que está feito para trás. Se estás a falar sobre sobreviver financeiramente, isso já é mais complexo, porque viver financeiramente de uma atividade artística passa sempre por muito jogo de cintura. Não é muito diferente de ser um biscateiro que trabalha na vila a fazer várias coisas, quer a arranjar frigoríficos, quer a cortar madeiras.
Portanto, acho que no caso de Diabo na Cruz somos músicos versáteis, capazes de fazer várias coisas diferentes e todos nós temos “tentáculos” noutro tipo de projetos e noutro tipo de atividades. A ideia é juntarmo-nos para fazer Diabo na Cruz porque para nós é magia, é orgulho e é um privilégio. É isso que está a acontecer agora.
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